terça-feira, 17 de agosto de 2010

Simplesmente Genet
Às Margens da Loucura Criadora
Literamente Marginal


“A sociedade, tal como vocês a constituem, eu a odeio. Eu sempre a odiei e vomitei. (...) Desde que encontrei na literatura um exutório, meu ódio tomou uma outra forma, menos pessoal: ele não se traduz mais num impulso interior mais ou menos acidental, ele se deduz de uma filosofia aclarada pela experiência. De um rancor nasce uma idéia. E essa idéia torna-se, à medida que avanço dentro de minha obra, mais serena e mais indestrutível. Eu o sei, eu o testemunho: a ordem social não se mantém senão ao preço de uma infernal maldição que aflige os seres, dentre os quais os mais vis, os mais nulos estão próximos de mim – quer isso agrade a vocês ou não – que qualquer burguês virtuoso e assegurado. Para sempre eu me fiz intérprete dos dejetos humanos, dos resíduos que apodrecem nas prisões, debaixo das pontes, no fundo da fétida podridão das cidades”. ( Genet, 1919- 1986)



O Funâmbulo


Jean Genet


"Uma lantejoula de ouro é um disco minúsculo feito de metal dourado, trespassado por um orifício. Tão fina e tão leve que pode flutuar sobre a água. Às vezes, uma ou duas ficam agarradas nos cachos de cabelos de um acrobata.
Este amor – mas, quase desesperado; mas, carregado de ternura – que deves demonstrar ao teu arame, terá a mesma força desse fio de ferro que suportará o teu peso. Conheço os objetos: sua crueldade, sua perversidade e também sua gratidão. O arame estava morto – mudo, cego, como quiseres – ei-lo: agora ele vai viver e vai falar.
Tu o amarás, e de um amor quase carnal. Cada manhã, antes de começar teus treinos, quando ele estiver tenso e vibrante, vai dar-lhe um beijo. Pede que te suporte e te conceda a elegância e um jarrete ágil. Ao fim de cada sessão, reverencia-o, agradece-lhe. E quando, à noite, ele ainda estiver enrolado, guardado em sua caixa, vai vê-lo e o acaricia. E, então, coloca docemente tua face contra a dele.
Certos domadores usam de violência. Podes tentar domar teu arame. Mas, não te fies nisso. O arame, como a pantera e, segundo se diz, como o povo, gosta de sangue. Assim, é melhor tentar domesticá-lo.
Um ferreiro – só um ferreiro de bigodes grisalhos e largas espáduas pode se permitir tais delicadezas – saudava assim, a cada manhã, sua amada, sua bigorna:
- Oh! Minha bela!
De noite, o dia já findo, sua mão calejada a acariciava. A bigorna não parecia insensível àquele gesto e o ferreiro se surpreendia comovido.
Incumbe ao arame executar a mais bela expressão possível; não a tua, mas a dele. Teus pulos, teus saltos, tuas danças – na gíria dos acrobatas, teus volteios, saltos mortais, estrelinhas etc – serão executados não para que brilhes, mas para que o arame, que jazia morto e sem voz, possa, enfim, cantar. E, assim, ele te será grato: se fores perfeito em tuas atitudes, não em busca de tua glória, mas da dele.
Que o público, maravilhado, o aplauda:
_Que arame maravilhoso! Como ele suporta tão bem seu bailarino e como ele o ama!
Ao chegar a tua vez o arame será para ti o mais maravilhoso bailarino.
E, então, será o chão que te fará tropeçar!"

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