terça-feira, 31 de agosto de 2010

Novo Ano Letivo Começando
Qual é mesmo o Sentido da Vida?

Michelangelo Buonarroti, 1511, Capela Sistina.

Mais um ano letivo começa a dar seus primeiros passos e sempre que me pego a pensar sobre “quem” sou e o que farei para que este ano seja melhor do que o ano passado, deparo-me com outro questionamento: “Como” sou?

Para falar a verdade, nem me interesso em saber quem sou e muito menos para onde vou, isto para mim é fato consumado. Entretanto, penso que o que faz a diferença é a ação de como sou. Penso que é nesta questão que gravita toda a existência humana. Se meus alunos me perguntassem, hoje, quem eles são ou o que serão, dira que poderiam ser qualquer coisa, desde que a diferença estive pautada de como eles são ou serão, independente de quem são.

E, uma coisa leva-nos à outra porque é por meio de “como” sou que determino quem sou, mas os valores perderam o rumo e o homem passou a dar uma importância muito maior em “ter” do que “ser”. E nesse jogo acabou por escolher as piores cartas e o que é mais insano ainda, não tem tempo para refletir a respeito e talvez não tenha tempo, justamente, pelas cartas escolhidas.


Lembrando de Robert Happé, aliás, nunca mais vou esquecer-me de Happé que faz uma análise cronológica das dependências humanas desde que o homem existe e de como somos micro e mesquinhos diante da idéia do macro.

Tudo que escrevo não está fundamentado em nada ou está em tudo, se considerarmos que todo, até então, dito está alicerçado em minhas existências. E a questão de quem eu sou torna-se nada se eu não perceber que ela somente vai fazer sentido a partir do outro, da minha ação (e posso escolher que ação tomar, mas nunca esquecendo que toda ação gera uma reação) comunitária.


Todavia, falar, pensar, imaginar, filosofar e escrever é fácil. O “ser peripatético” de Sócrates era válido, é bem verdade, porque jogava o homem a refletir sobre suas ações, entretanto é na prática que as mudanças acontecem. É quando desligo este computador (ou não, porque hoje muitos relacionamentos aqui estão) e me encontro com o outro, é a partir daí que justifico minha estada neste mundo, mas isto tem de acontecer de verdade.

Se levarmos em conta que nada somos individualmente e imaginarmos que estamos todos soltos em um vasto universo, presos em um geóide enorme (sem sustentabilidade atual ou futura), penso que teríamos mais consideração a tudo que nos rodeia, da mesma forma que estamos todos no mesmo barco e que nossas ações é que permitirão a liberdade verdadeira e não essa liberdade efêmera, a qual o homem busca.

Não adianta buscar existências em outras terras ou tentar imaginar que podemos habitar outros planetas. Nossa existência aqui é única e atualmente (ou sempre) estamos de passagem e nunca nos veremos outras vezes, fisicamente falando.

Então, caso eu acredite em tudo isto que estou a escrever, o que faz a diferença realmente? A diferença está na ação do encontro com o outro.

Praticando este acreditar, enquanto professora (porque exercemos vários papéis, até os que não são nossos e ainda, muitas vezes, queremos exercer o do outro) penso que minha prática de mudança dar-se-á a partir do momento que considero meu aluno como um todo, aliás um “único todo” e que deve ser respeitado como tal. Meu papel não é nem encaminhá-lo, mas sim tentar perceber quem está sentado a minha frente e a partir desta percepção, de como ele é ou está, tentar encaminhá-lo. Claro que minha percepção depende muito de quem sou e meu “quem sou” é o resultado de “como sou”.

Se todos empresários considerassem seus operários para além dos portões de suas fábricas e todos os professores levassem em conta que seus alunos são muito mais que alunos, poderíamos imaginar que logo ali, na frente, eles entenderiam que não foram enganados e que as ações eram em benefício de todos. Uma troca sem cobrança; a existência misteriosa, mas que habita somente no outro.

Leonardo Boff fala-nos que o mistério está no outro e não em nós, é no outro que habita o maior desafio porque este entendimento obriga-nos a sair de nós mesmos e a partir do momento que o outro se concretiza a nossa frente nasce à ética, justamente porque o outro nos exige uma atitude prática. O outro significa uma proposta de vida que pede uma res-posta com res-ponsa-bilidade. E pensar de forma contrária é, no mínimo, pretensioso.

Tudo isso podemos traduzir e
m um sentimento que conhecemos pela palavra AMOR. Amor de compreensão, amor de encaminhamento, amor de vida, amor que torna o outro muito mais importante do que ele pensa ser, amor que transforma sem romper limites, amor que ama de verdade sem dar e nem receber, somente existe naturalmente e é a única forma existencial eterna.
É tão simples, somos todos irmãos, todavia, ainda, não percebemos.


Lembrei-me agora de um menino que nasceu há 2010 anos e que dizia assim:
“Amai o próximo como a ti mesmo”.

Se analisarmos um pouco a questão dos escritos, dos Evangelhos canônicos (não quero defender religião alguma, até porque não tenho uma), a grandeza da criação, dá-se a partir da revelação do outro.

Acredito fielmente que se nossas ações não forem individualmente benéficas a todos, de nada vai ter valido a pena, mesmo que nossa alma não seja pequena.

Por fim, o homem busca respostas a questionamentos complexos, mas tudo está em um ato muito simples: Amar o outro. Enquanto pensam, esquecem de praticar.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Simplesmente Genet
Às Margens da Loucura Criadora
Literamente Marginal


“A sociedade, tal como vocês a constituem, eu a odeio. Eu sempre a odiei e vomitei. (...) Desde que encontrei na literatura um exutório, meu ódio tomou uma outra forma, menos pessoal: ele não se traduz mais num impulso interior mais ou menos acidental, ele se deduz de uma filosofia aclarada pela experiência. De um rancor nasce uma idéia. E essa idéia torna-se, à medida que avanço dentro de minha obra, mais serena e mais indestrutível. Eu o sei, eu o testemunho: a ordem social não se mantém senão ao preço de uma infernal maldição que aflige os seres, dentre os quais os mais vis, os mais nulos estão próximos de mim – quer isso agrade a vocês ou não – que qualquer burguês virtuoso e assegurado. Para sempre eu me fiz intérprete dos dejetos humanos, dos resíduos que apodrecem nas prisões, debaixo das pontes, no fundo da fétida podridão das cidades”. ( Genet, 1919- 1986)



O Funâmbulo


Jean Genet


"Uma lantejoula de ouro é um disco minúsculo feito de metal dourado, trespassado por um orifício. Tão fina e tão leve que pode flutuar sobre a água. Às vezes, uma ou duas ficam agarradas nos cachos de cabelos de um acrobata.
Este amor – mas, quase desesperado; mas, carregado de ternura – que deves demonstrar ao teu arame, terá a mesma força desse fio de ferro que suportará o teu peso. Conheço os objetos: sua crueldade, sua perversidade e também sua gratidão. O arame estava morto – mudo, cego, como quiseres – ei-lo: agora ele vai viver e vai falar.
Tu o amarás, e de um amor quase carnal. Cada manhã, antes de começar teus treinos, quando ele estiver tenso e vibrante, vai dar-lhe um beijo. Pede que te suporte e te conceda a elegância e um jarrete ágil. Ao fim de cada sessão, reverencia-o, agradece-lhe. E quando, à noite, ele ainda estiver enrolado, guardado em sua caixa, vai vê-lo e o acaricia. E, então, coloca docemente tua face contra a dele.
Certos domadores usam de violência. Podes tentar domar teu arame. Mas, não te fies nisso. O arame, como a pantera e, segundo se diz, como o povo, gosta de sangue. Assim, é melhor tentar domesticá-lo.
Um ferreiro – só um ferreiro de bigodes grisalhos e largas espáduas pode se permitir tais delicadezas – saudava assim, a cada manhã, sua amada, sua bigorna:
- Oh! Minha bela!
De noite, o dia já findo, sua mão calejada a acariciava. A bigorna não parecia insensível àquele gesto e o ferreiro se surpreendia comovido.
Incumbe ao arame executar a mais bela expressão possível; não a tua, mas a dele. Teus pulos, teus saltos, tuas danças – na gíria dos acrobatas, teus volteios, saltos mortais, estrelinhas etc – serão executados não para que brilhes, mas para que o arame, que jazia morto e sem voz, possa, enfim, cantar. E, assim, ele te será grato: se fores perfeito em tuas atitudes, não em busca de tua glória, mas da dele.
Que o público, maravilhado, o aplauda:
_Que arame maravilhoso! Como ele suporta tão bem seu bailarino e como ele o ama!
Ao chegar a tua vez o arame será para ti o mais maravilhoso bailarino.
E, então, será o chão que te fará tropeçar!"

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O Escritor Que Sabia Demais

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Orwell tinha uma frase muito sábia que dizia assim: “existem coisas em que só os intelectuais são loucos em acreditar”.

As leituras de férias são sempre compostas por aqueles títulos que deixamos para depois. Leituras igualmente importantes das realizadas fora do período de férias, mas que podem esperar um tempo para serem lidas.
Pois bem, em uma dessas leituras importantes, mas que podia esperar, deparei-me com um artigo muito interessante (com vários), mas esse, especialmente, tratava de uma entrevista ao escritor João Lobo Antunes, irmão do escritor Nuno Lobo Antunes e do escritor António Lobo Antunes, uma família de médicos e escritores. Aliás, interessante desse tríptico formado de nomes e de profissões.

Voltando ao artigo da revista LER - Livros & Leitores, publicada em julho/agosto de 2010, na seqüência da entrevista, na página 20, bem no alto da página havia duas perguntas assim ao escritor:

P1- Queria ainda perceber melhor o que é que espera da Crítica Literária?;
R- O que espero, mas se calhar isto não é legítimo, é uma capacidade de selecção, uma capacidade pedagógica, de me ensinar. Quero alguém cujo magistério me possa ser útil. Que me diga assim: “ Leia isto que vale a pena ler:” Alguém em que eu tenha suficiente confiança para dizer: “ Com certeza, vou seguir o conselho, vou ler.” (João Lobo Antunes)

P2- Para isso é preciso estabelecer um elo de confiança com esse leitor que escreve sobre o que leu
R- Pois é. Há muita crítica literária- e, uma vez mais, digo isto com a maior das humildades- que consiste basicamente em extrair do livro largos excertos da prosa do autor. Mas, como disse, se calhar o problema é meu.(João Lobo Antunes)

Bem, imagino que há uma enorme confusão, tanto no questionamento, como na resposta às duas perguntas. Caso o autor pretenda ter uma dica de leitura por um especialista, neste caso o crítico literário, imagino que ele esteja mencionando a prática pedagógica dentro de uma universidade ou mesmo fora dela, mas efetuada por um especialista e mesmo assim não há garantia de uma boa leitura. Afinal, quem nos garante a certeza na análise do crítico? Como analisa? De que ponto de vista parte e com que autonomia refere-se “àquilo” que não escreveu?

O crítico literário, bem lembrado na concepção do professor Binho, quando lê, aprende a ler com filtros teóricos. Tem a perda de algo que nunca teve de verdade: a leitura inocente, a relação do puro prazer com a literatura. Não tem nenhum ato de linguagem inocente, toda sua leitura é crítica. Falar, escrever, ler e interpretar são ações que acontecem à luz da ideologia que nos constitui, até mesmo quando pregamos a não-ideologia. Esse, às vezes, esquece disso e reflete um vazio de sentido naquilo que rabisca. Escreve para manter a pose intelectual sintonizado com o próprio tempo. Experimenta uma inteligência artificial que periga apagar para sempre sua sensibilidade. Fica, muitas vezes, confuso e impotente com tantas teorias da interpretação. Tece para uma academia que declarou o fim da leitura livre e instaurou o discurso da crítica acadêmica mecanicamente especializada.

Por fim, caso estivéssemos a falar em uma classificação literária, entre a boa e a ruim, para além de questionarmos a condiçao do crítico literário, questiono também a marginalidade da literatura, ou seja, obras hoje consagradas que em outros tempos eram consideradas à margem (Poe, Fante, Jean Genet, Bukowski, Blake, Samuel Beckett, Jack Kerouac, Burroughs, Camões, Junqueira, António Patrício, Gregório de Mattos e Guerra, Chico Buarque, Cora Coralina, Carolina De Jesus, Cruz e Sousa, entre tantos outros ) e muitas, inclusive, proibidas de publicação. E, com isso, o círculo se fecha na intencionalidade dessa classificação.

A prática pedagógica, mencionada pelo escritor, está fora de questão, o que vale mesmo a pena é ( e para todos os casos, se nossa alma não for pequena) nosso aluno ter tempo para poder selecionar uma boa leitura, ou melhor, aquela que ele considera uma boa leitura e a partir daí ter um crescimento literário que possa agregar as demais leituras indicadas.

*______________ Ilustração de Irene Sheri, Ucrânia/1968.