sábado, 26 de junho de 2010

Um Nobre Saramago*____
A Literatura Agradece!


Engraçado como a memória de algumas pessoas entra em colapso e se perde no próprio esquecimento quando alguém morre. Se for alguém famoso então, parece que da noite para o dia tudo muda de figura, inclusive até a própria figura que de tanto desfigurada com os dizeres temporais é relembrada.
Quantas palavras jogadas fora, quanto tempo perdido diria aquele menino de Azinhaga, tímido e de um coração que somente poucos tiveram o privilégio de conhecer.
Imagino que Saramago tenha vivido o que poucos homens viveram nessa vida. Uma vida feita de dizeres que se queria dizer, dizeres soltos no tempo que com o tempo foram, vagarosamente, percebidos. E um grande amor.
Pilar, pilares de uma lembrança de menino.
A saudade deixada por Saramago é para além dos escritos e fica bem dita em suas próprias palavras.


“O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira". Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para toda as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava... No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?". Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: "Não faças caso, em sonhos não há firmeza". Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprias filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.
Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e esta minha avó Josefa (faltou-me dizer que ela tinha sido, não dizer de quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar), tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver. A mesma atitude de espírito que, depois de haver evocado a fascinante e enigmática figura de um certo bisavô berbere, me levaria a descrever mais ou menos nestes termos um velho retrato (hoje já com quase oitenta anos) onde os meus pais aparecem: "Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e de outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia... Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas neoclássicas". E terminava: "Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos, uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato - que outra genealogia pode importar-me? a que melhor árvore me encontraria?"
Escrevi estas palavras há quase trinta anos, sem outra intenção que não fosse reconstituir e registar instantes da vida das pessoas que me geraram e que mais perto de mim estiveram, pensando que nada mais precisaria de explicar para que se soubesse de onde venho e de que materiais se fez a pessoa que comecei por ser e esta em que pouco a pouco me vim tornando. Afinal, estava enganado, a biologia não determina tudo, e, quanto à genética, muito misteriosos deverão ter sido os seus caminhos para terem dado uma volta tão larga... À minha árvore genealógica (perdôe-se-me a presunção de a designar assim, sendo tão minguada a substância da sua seiva) não faltavam apenas alguns daqueles ramos que o tempo e os sucessivos encontros da vida vão fazendo romper do tronco central, também lhe faltava quem ajudasse as suas raízes a penetrar até às camadas subterrâneas mais fundas, quem apurasse a consistência e o sabor dos seus frutos, quem ampliasse e robustecesse a sua copa para fazer dela abrigo de aves migrantes e amparo de ninhos. Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtoras da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as outras, as efectivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é defeito mas também naquilo que é excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei. Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha chegado a ser. Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de autor, como títeres articulados cujas acções não pudessem ter mais efeito em mim que o peso suportado e a tensão dos fios com que os movia (…)”.
“(…)Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo”.


Por JOSÉ SARAMAGO
Estocolmo, 07 de Outubro de 1998.


*__________ Saramago nunca foi o seu apelido (sobrenome) e sim era alcunha (apelido) da família dos Sousa; uma erva daninha, comestível, anual ou bienal, da família das Crucíferas que nasce sem a necessidade do cultivo, da mesma forma que existe por todo país Portugal.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Educação e o Ensino da Literatura

A literatura universal compreende difusões de cultura de diferentes povos; Santos e Pereira (1999:18) comentam “que existem diferentes contribuições à literatura universal, à grande literatura”. Abrindo um pouco com a idéia de literatura universal, os autores complementam que “não existem literaturas menores, mas contribuições distintas no conceito da literatura universal”. Estas contribuições acontecem em vários níveis, entre: os autores; autores e leitores; autores, educadores e leitores, formando um grande grupo literário, o que exige certa compreensão de todos os seus membros, que forma opiniões e necessitando o respeito mútuo, para que seja alcançado um dos principais objetivos da literatura, que é a comunicação por meio da troca de idéias, sem espaço para a distinção cultural e conseqüentemente, inserindo realidades, fazendo ligações entre diversos mundos possíveis a arte literária retrata a própria condição de existir.
Se pararmos para analisar em que o conceito estrutural filosófico e pedagógico está o embasamento da literatura universal, veremos que o da literatura universal, está compreendido a partir de um determinado grupo de obras que emergem de um determinado histórico-social-cultural para fazer parte, fragmentado em diversos períodos que vão determinar a grande literatura. Logo, o que forma a grande literatura e a escola, se não os fragmentos da interação de todos, de cada época literária e do seu tempo correspondente? Ou seja, duas partes que interagem para formar para todos, neste caso para a formação da grande literatura universal e da formação do homem.
Ora, se a literatura é uma das formas de linguagem, para além disso ela dialoga com o leitor e cria no indivíduo um ajustamento para com o mundo e por meio desse ajustamento acaba por inserir o aluno via conhecimento de outros mundos, logo, poderíamos pensar que a mesma é autônoma, para além imaginarmos que ela seja uma ciência por dar um novo prisma para outras áreas.
Essa troca de informações, idéias e cultura, fazem da literatura uma grande expressão da arte, tendo capacidade integradora, em que retoma e atualiza a própria condição existencial de um ser situado, que não conhece o mundo como uma coleção de objetos diante de si, mas como horizonte originário do sentido que se materializa em cada experiência vivida. Lembrando Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2002).
Logo, muitas questões cercam a intencionalidade da Educação e conseqüentemente da literatura, uma vez que esta é parte integrante da cultura escolar , bem como o conceito da disciplina de literatura, pois a mesma sempre esteve à mercê de seus períodos históricos e sociais que determinavam seu ensinamento.
Quando refletimos sobre a forma metodológica do ensino da literatura, e analisamos a respeito da aversão dos nossos alunos às obras literárias, ocorrem-nos sempre os problemas de ensinamentos dos textos literários. Obras fora do contexto atual e longe da realidade estudantil. Da mesma forma em que há diferenças substantivas e subjetivas na maneira na qual os professores encaram e exercem o ensino da literatura no âmbito da disciplina de Língua Portuguesa.
Todavia, antes de analisarmos a parte comportamental de nossos alunos diante do conteúdo da disciplina de literatura, há de se fazer uma fundamental ressalva na problemática do ensino, neste caso para a formação de professores do Curso de Letras, que reside no tratamento generalizado para o ensino da disciplina de literatura no âmbito da disciplina de Língua Portuguesa.
Essa máquina educacional acaba por produzir em série um corpo discente despreparado, do mesmo jeito que forma sem a preocupação de como esse grupo discente vai se tornar docente (professores de literatura) e como usará as metodologias ensinadas. Na seqüência dos fatos essa mesma máquina institucional acaba por receber um novo grupo de alunos formado por aqueles que ela própria certificou sendo aptos a ministrarem. Sendo assim, o ciclo está fechado de forma viciosa e trazendo consigo a falta de leitores aptos para o mundo literário.
Logo, uma nova competência à capacidade de organizar e de dirigir situações de aprendizagem faz-se necessária, porque cada aluno, sem dúvida alguma, vivência à aula conforme o seu humor, sua capacidade de concentração e tudo que lhe ligue ao mundo que o interessa no que aprendeu e na literatura não se dá de forma desigual.
Desta forma, entendemos que o ensino da leitura literária não pode ser apenas imposto, ele deve sim, ser incentivado, pois, sempre que possível, dar liberdade de escolha. Da mesma forma que entendemos que esse processo somente se dará diante de professores preparados para ministrarem tais ensinamentos.